Reflexões sobre a descolonização do olhar

Heloiza Dias
7 min readJul 3, 2020

--

Little Fires Everywhere chegou ao Brasil pela Amazon Prime Vídeo e tem como protagonistas, Mia Warren e Elena Richardson, respectivamente interpretadas por Kerry Washington (eterna Olívia Pope) e Reese Whiterspoon. O enredo da série é desenvolvido a partir do contraste entre essas duas personagens femininas que se conhecem quando Mia se muda com sua filha, para o bairro onde Elena mora com sua família.

A série é baseada no best-seller de Celeste Ng e a trama se passa exatamente na cidade natal da autora, Shaker Heights, em Ohio. O subúrbio norte-americano é a primeira comunidade planejada do país, projetada para ser um modelo perfeito, onde até a grama tem um padrão de altura que deve ser seguido por todos os moradores.

Elena Richardson (Reese Whiterspoon) é uma moradora exemplar. Mãe de quatro filhos, jornalista e esposa de Bill, um advogado bem sucedido.

Já no primeiro episódio, enquanto Elena se digiria ao seu trabalho, ela vê um carro de modelo antigo com uma mulher afro-americana — como ela a denomina — e resolve ligar para a polícia e argumenta que:

“Ela odiaria não falar e algo de ruim acontecer”.

Em uma passagem do livro “Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano” (2019), a teórica Grada Kilomba, descreve a forma como o sujeito negro é identificado pelo mundo conceitual branco:

No mundo conceitual branco, o sujeito negro é identificado como o objeto ruim, incorporando os aspectos que a sociedade branca tem reprimido e transformado em tabu, isto é, agressividade e sexualidade. (KILOMBA, 2019)

É nesse contexto que somos introduzidos a Mia Warren, uma artista e mãe solo que vive com sua filha, Pearl (Lexi Underwood).

As duas famílias se entrelaçam quando Elena, aluga uma casa pra Mia morar com a filha por um preço baixo e sem verificar seus antecedentes — como um gesto de bondade — é nesse momento que fica clara a Síndrome de Salvador Branco da personagem.

Elena projeta na família Warren o imaginário do que ela considera que a negritude deveria ser, sendo assim, não lida exatamente com os indivíduos, não se preocupa em conhecer, em estabelecer relações horizontais. Ela apenas exerce a função de salvadora, estimulada pelo imaginário branco que espera pela negra selvagem, pela negra bárbara, por serviçais negras, por negras prostitutas, putas e cortesãs, por negras criminosas, assassinas e traficantes (KILOMBA, 2019).

Ainda em outra cena, Elena motivada a ajudar a família, sugere a Mia que ela tire fotos de casamento para conseguir mais dinheiro e não precisar trabalhar a noite no restaurante chinês da cidade, Mia a responde de maneira direta, recusando sua intervenção.

Elena não contente, oferece a Mia um emprego em sua casa, como “governanta”. Em primeiro momento, Mia é relutante, mas pelo fato de sua filha estar cada vez mais próxima da família e querer um lar fixo, ela decide aceitar a proposta com ressalvas.

Essa cena nos leva a refletir sobre a forma como o racismo se manifesta quando relacionado a gênero. Nesse cenário a relação não é vista como de mulher/mulher e sim, senhora/servente. Se a discussão se direciona ao gênero, então porque essa mulher poderia submeter essa outra mulher a servidão, porque não ser ela mesma a serva e cuidar de sua própria casa? Se como mulheres nós somos iguais, como ela poderia se tornar minha sinhá virtual e eu a escrava figurativa? (KILOMBA, 2019).

Sobre perpetuação

A maternidade é colocada na série de maneira visceral. Elena, com seus quatro filhos, sendo os dois mais velhos, Trip e Lexie, seus filhos de ouro, enquanto os mais novos, Moody e Izzy, não parecem corresponder as expectativas dela enquanto mãe exemplar.

Lexie (Jade Pettyjohn) é considerada a garota mais bonita da escola, aluna exemplar e namorada de Brian, um garoto negro que é o astro do time de futebol americano do colégio.Trip (Jordan Elsass) é o típico “garoto americano de filme” popular e que conquista todas as garotas. Moody (Gavin Lewis) é o oposto do irmão, introspectivo e nerd, ele se torna companheiro inseparável de Pearl e logo, se apaixona por ela. A filha mais nova, Izzy (Megan Stott) ganha destaque na trama por frequentemente questionar as atitudes de sua mãe e enfrentá-la, a garota desenvolve uma relação de proximidade com Mia, quando a mesma a reconhece como uma artista.

Pearl é uma garota extremamente inteligente, intelectual e até certo ponto, ingênua quando se trata de consciência racial. Nota-se o deslumbramento da personagem com a família Richardson e a vontade incessante que a mesma tem de fazer parte daquele contexto. Essa situação é vista por Mia, como uma grande ameaça a tudo que ela criou e ensinou a filha a acreditar.

A cena chave que desenrola alguns acontecimentos é quando Pearl, pede ao conselheiro de seu colégio que a coloque em uma classe avançada de matemática e o mesmo, a subestima, dizendo que alunos vindos de Cleeveland, normalmente não tem base suficiente para estar em uma classe avançada. Aqui fica exposta a hierarquia, onde o conhecimento está em um lugar branco e elitizado portanto, o corpo de Pearl não foi lido como um corpo acadêmico e intelectual, pois este lugar está reservado a branquitude.

No racismo, corpos negros são construídos como corpos impróprios, como corpos que estão “fora do lugar” e, por essa razão, corpos que não podem pertencer. (KILOMBA, 2019)

O fato do conselheiro não se importar em estabelecer diálogo e apenas pré conceber que Pearl não é adequada para classe, apenas evidencia o máxima de que corpos brancos estão sempre no lugar, pois todo e qualquer lugar foi feito para eles e mais do que isso, pertencem a eles, enquanto corpos negros estão constantemente sendo convidados a retornar a “seus lugares”, no caso de Pearl, esse lugar é a classe menos avançada.

Afim de questionar a decisão tomada pelo conselheiro, a garota escreve uma carta onde detalha as dificuldades de ser mulher e reivindicar seus lugares dentro do ambiente acadêmico. Inocentemente, ela pede a Elena que revise sua carta, que prontamente já se compromete a resolver a situação com o conselheiro pessoalmente.

Lexie se aproveita deste momento para roubar a carta de Pearl e a coloca na sua carta de admissão para a universidade de Yale, se apropriando das vivências e do poder intelectual da garota em benefício próprio. Ao ser confrontada por seu namorado afro-americano — como ela faz questão de mencionar repetidamente — ela diz que vai resolver a situação com Pearl como um ato de sororidade.

A incoerência deste termo quando avaliado dentro desta série é relevante para análise de infinitas situações. Da mesma forma como Elena enxerga Mia, Lexie também enxerga Pearl, não existe horizontalidade baseada em gênero. A raça vem antes quando a garota decide roubar a história de Pearl e como “pedido de desculpas” a compra um vestido, a relação de poder é escancarada.

Grade Kilomba faz uma importante reflexão baseada em dois conceitos cunhados pela também escritora, bell hooks, de “sujeito” e “objeto” argumentando que sujeitos são aqueles que “têm o direito de definir suas próprias realidades, estabelecer suas próprias identidades, de nomear suas próprias histórias. Como objetos, no entanto, nossa realidade é definida por outros, nossas identidades são criadas por outros, e nossa “história designada somente de maneiras que definem (nossa) relação com aqueles que são sujeitos” (hooks, 1989, p.42). A forma como Pearl passa de objeto a sujeito por meio da escrita de sua própria história é um ato político que é interrompido e apropriado por Lexie.

Historicamente, a branquitude têm se apropriado dos corpos, da liberdade individual e até mesmo, de elementos simbólicos da cultura negra e se beneficiado disso. Assumindo características físicas e até mesmo intelectuais, e as embranquecendo para torná-las aceitáveis no mundo conceitual branco.

Essa inversão de papéis perdura até o momento em que Lexie decide fazer um aborto e ao invés de colocar seu nome na ficha médica, usa o nome de Pearl. A garota considera sua gravidez como um “ato falho” diante da estrutura extremamente conservadora em que foi criada, dessa forma, impõe a responsabilidade dele sobre a outra.

Todos esses paralelos nos levam a entender como as relações acabam sendo perpetuadas dentro dessas macro-estruturas, que na série, podemos entender como a cidade e que passam até as micro-estruturas, como as relações pessoais. O racismo está sempre presente.

A metáfora da primeira cena da série, em que a mansão em que Elena e sua família vivem está sendo destruída pelo fogo e ela assume que o incêndio é culpa dela, é importante para que possamos entender que essas estruturas precisa ser destruídas. É preciso transformar. Em tempos de monumentos racistas sendo derrubados é preciso entender que, enquanto sociedade, chegamos ao limite. É urgente.

É preciso descolonizar o olhar.

Memórias da Plantação: Episódios Cotidianos de Racismo (2019) é um livro extremamente poderoso, a teórica, psicóloga, artista e escritora, Grada Kilomba trás análises importantes para entendermos a configuração social atual e como ainda vivemos constantemente, ligados ao pensamento colonial e como este se manifesta em ações do cotidiano.

A autora faz uma importante reflexão sobre como a história precisa ser contada através de outros ângulos — que não só os que já estamos acostumados a ouvir — e mais do que isso, a importância de tornar-se sujeito através da escrita — quando eu escrevo, eu conto minha história.

--

--

Heloiza Dias

Escrevo nas horas vagas (e nas não vagas também) | Designer de Conteúdo na Petlove